domingo, novembro 25

Sob o umbral dos falecidos

O som da campainha ecoou pelos cômodos solitários da mansão. Roberto atravessou a sala e atendeu a porta. Do lado de fora, em pé sobre a calçada de pedra, estava Flávio, seu amigo de muitos anos. Chovia forte.
- Fico contente que tenha aceitado meu convite - Disse Roberto, trazendo o amigo pra dentro de casa.
- Não entendo como se deixou levar por esse tipo de coisa. -Respondeu Flávio, chacoalhando o chapéu e o pesado manto para tirar o excesso de água da chuva torrencial que desabava sobre a cidade naquela noite. Ao pendurar seus pertences no cabide, continuou. – Meia dúzia de tolices, ditas por uma benzedeira? Francamente... Nem Houdini acredita nesse tipo de bobagem. - Dito isso, sentou - se numa poltrona no centro da grande sala. Roberto serviu - lhe um copo de vinho, acomodando – se no sofá em frente ao amigo.
- Você não tem idéia do que tenho passado dentro desta casa, desde a morte de meu pai, Flávio. – Roberto disse em tom sério. - Tem acontecido coisas , comigo e com quem quer que esteja debaixo deste teto, que a racionalidade com a qual estamos acostumados não pode explicar.
Flávio tomou um gole de vinho e se voltou para o amigo. – Ainda está muito abalado com o suicídio de seu pai, Roberto. Os últimos meses não foram fáceis para você. Posso compreender.
- Não se trata de descontrole emocional. Em absoluto. Tenho total consciência do que vi e certeza de não ser nenhum sintoma de estafa mental ou problema psicológico.
- Tudo bem. Tudo bem. Não foi isso que eu quis dizer. - Flávio bebeu novamente. Um longo gole. - Mas me diga. A benzedeira já não deveria estar aqui? Passa das onze horas. Não foi o horário que combinou com ela, conforme me disse ao telefone?
- Seu nome é Idalina e não é nenhuma benzedeira, Flávio. É uma médium.
- Sei. Daqueles discípulos de Allan Kardec, correto?
- Isso mesmo. Mas você tem razão. - Roberto tirou o relógio de dentro da lapela, no interior de seu casaco, e examinou as horas. - Ela já deveria estar aqui.
Como que em resposta a sua observação, a campainha tocou.
- Pois é. Nossa convidada chegou. - Brincou Flávio.
Roberto atendeu a porta. Trouxe pra dentro da casa uma senhora de cabelos brancos e bem arrumados, vestida com roupas sóbrias, típicas da idade, cinzentas e discretas. Carregava, sobre os ombros um xale verde – escuro. A chuva, lá fora, havia cessado.
- Boa noite, senhores. - Cumprimentou. Roberto e Flávio responderam educadamente. - O ambiente está bastante tranqüilo, tanto no reino material quanto no espiritual. Obteremos resultados satisfatórios com nossos irmãos desencarnados esta noite.
- Evidentemente. - Completou Flávio, esforçando – se para não rir. Roberto lançou – lhe um olhar de reprovação e, em seguida, conduziu, ele e a idosa visitante, para outro cômodo da mansão, uma sala com grandes janelas cobertas por cortinas, com uma mesa redonda ao centro. Os três tomaram seus lugares, com Idalina posicionada entre os dois amigos.
A médium inquiriu. - Podemos começar, senhores?
Ambos consentiram. Teve início o ritual.
- Almas abençoadas que vagam e habitam nesta casa! - Dizia Idalina, num tom respeitoso, porem exaltado. - Estamos desejosos em saber suas vontades e anseios. Fazei – nos conhecedores deles.
Seguiu – se um longo momento de silêncio. Flávio ia dizer alguma coisa quando foi interrompido pela médium, que começou a gemer e contorcer – se, na cadeira onde estava.
- Ela está bem? - Perguntou o rapaz, preocupado.
- Está sim. Fique tranqüilo. É parte do processo.
Num rompante espasmático, Idalina saltou da cadeira com força e violência que não condiziam com sua estatura física. Jogou – se no chão e lá ficou, imóvel, repetindo frases ininteligíveis, em voz sussurada.
Flávio, já não achando tudo tão engraçado quanto antes, começava a se sentir desconfortável diante daquela situação. Foi quando as coisas ficaram ainda mais dramáticas.
Idalina Voltou a se contorcer, agora de forma um pouco menos violenta que antes, como se estivesse sendo vitimada não por algum tipo de dor, mas sim por um mal – estar indescritível. Flávio observava, cada vez mais espantado, a cena que se desenrolava diante de seus olhos, até então incrédulos. Uma substância branca e vaporosa, de consistência aparentemente pastosa, escapava pela boca, ouvidos e narinas de Idalina.
- Ectoplasma - Disse Roberto ao amigo. - Já ouvi falar. Permite que os espíritos se manifestem em formas físicas no mundo dos vivos.
A médium continuava no chão, enquanto o vapor branco cascateava pra fora de seu corpo, espalhando – se pelo chão da sala, serpenteando, como se fosse dotado de consciência própria. Em dado momento, o ectoplasma se aglutinou numa massa compacta até assumir forma humanóide. Segundos depois essa forma transformou – se num homem, com as claras feições do pai de Roberto.
- Meu filho. - Sussurou o espectro esbranquecido. Foi a vez de Roberto se espantar com tudo o que acontecia diante dele e do amigo Flávio, este quase que paralizado, sem emitir uma palavra sequer.
- Pai... - Respondeu Roberto.
- Filho. Venho de muito longe para lhe trazer um aviso. – Continuou o fantasma. – Venho tentando alertá – lo desde minha passagem.
- Então fale, meu pai...
– Minha morte não foi produto de estupidez. Ela teve um motivo.
Com os olhos tomados por lágrimas. Roberto buscava forças para continuar o diálogo. - O que aconteceu então, meu pai? Porque fez aquilo?
- Esta casa, Roberto, é o reduto de almas á muito tempo. Este lugar pertence a elas e nossa presença as perturba. Não quis entender isso, quando descobri a verdade, e veja o que me aconteceu.
- Mas pai, devia ter falado comigo. Juntos encontraríamos uma saída. Não devia ter me abandonado daquela forma. Primeiro perdi minha mãe e agora o senhor...
- Não se perturbe com isso. Eu estou bem. Quero que você fique bem. Mas pra isso deve abandonar esta casa e jamais permitir que outras pessoas vivam nela ou a destruam. É meu único herdeiro. Tem muitos lugares pra onde ir e como garantir que nada aconteça á este lugar.
- Sim pai. Eu sei. Como sempre, você tem razão. Vou deixar este lugar o mais rápido possível.
Um semblante de satisfação surgiu no rosto do fantasma. – Será melhor para você, amado filho. É o desejo de sua mãe, também. Estamos juntos mais uma vez, sabia?
- Mamãe sofreu tanto antes de morrer, pai. - A amargura nas palavras de Roberto era quase palpável. - Aqueles longos meses naquela cama.
- Mas agora estamos bem. Todos aqui estão muito bem. Nesta nova vida sua mãe está perpetuamente livre da tuberculose que a vitimou na terra dos vivos.
Nesse instante, Roberto e Flávio se entreolharam, confusos.
- Tuberculose? Mas a mamãe morreu de meningite!
O rosto do fantasma se transformou numa carranca monstruosa e a criatura saltou violentamente sobre Roberto. Suas mãos se fecharam sobre a garganta do rapaz e ele foi rapidamente estrangulado. Flávio tentou ajudar seu amigo mas foi atirado pelo espírito para o outro lado da sala. Caiu de mau jeito, ferindo o ombro direito. Ao se levantar pode ver o corpo de Roberto ser jogado de lado pelo monstro espectral. A criatura começou á caminhar em sua direção.
- Malditos intrometidos! Vou matar todos vocês e quantos mais vierem para este lugar.
Rápido como ser humano algum jamais poderia ser, o espírito se atirou sobre Flávio, segurando sua garganta, apertando – a ferozmente. Flávio estava indefeso, sem poder fazer nada para impedir a morte iminente. Sua cabeça começava a girar quando sentiu que as mãos da criatura já não apertavam com tanta força. O fantasma largou Flávio e, ficando cada vez mais insubstâncial, se levantou.
- Meu tempo. Meu tempo está se exaurin...
Antes de poder terminar a frase, o fantasma desfez – se no ar. Não restando o menor sinal do ectoplasma que um dia lhe deu forma.
Quase ao mesmo tempo Idalina começou á recobrar a consciência.
Sen – Senhores? Por favor... Me ajudem á levantar... – Disse com sofreguidão,enquanto apoiava - se no braço de um móvel próximo, colocando - se em pé. Ao ver o cadáver de Roberto, soltou um urro de espanto e mais uma vez apoiou – se no móvel para não ir ao chão novamente.
- MULHER!!! – Gritou Flávio, indo em direção á médium. – O que aconteceu aqui? Trouxe o demônio para dentro desta casa?!
Idalina estava confusa. Não sabia o que dizer ou fazer.
- Senhor. O Dr. Roberto... Morto...?
Flávio se pôs diante da senhora, numa postura ameaçadora, quase descontrolada.
- É isso mesmo! Morto! MORTO!!! E a culpa é do monstro que invocou dos mortos!
- Quem? N – Não entendo, senhor...
- Pois vou clarear sua mente! – Gritou Flávio. – O espírito que você trouxe pra cá, á pedido de Roberto, quebrou o pescoço do meu amigo! Por pouco não fez o mesmo comigo!!!
Idalina sentou – se, confusa.
- Isso não é possível. Os irmãos do mundo espiritual não devem... Não podem fazer isso...
- Pois fizeram! Um desses bastardos matou meu amigo! E não pude fazer nada...
Flávio estava prestes á chorar . Se abaixou ao lado do corpo do amigo e afagou seus cabelos. Nesse mesmo instante Idalina gritou. O rapaz olhou para a médium e a viu levar as mãos á cabeça, ao que parecia, sentindo violentas dores. Em seguida, caiu no chão, desmaiada.
Flávio se levantou e aproximou – se da mulher. Ela abriu os olhos e eles faiscavam com uma chama sobrenatural que nenhum ser vivo teria. Idalina se levantou numa velocidade alucinante e golpeou Flávio, jogando – o longe, mais uma vez.
- Pensou que se livraria de mim tão facilmente. Flávio? Conheço muitos meios de permanecer no seu mundo. – Disse Idalina, com uma voz que não lhe pertencia.
Flávio tentou se levantar mais foi rapidamente jogado no chão pela médium.
- O que é você? – Gritou, desesperado. Não pode ser o pai de Roberto!
Idalina gargalhou monstruosamente e depois respondeu.
- É evidente que não sou o pai do seu amigo. Sou um guardião. O responsável por este lugar. Esta casa é uma passagem e sou seu porteiro.
A forma possuída da senhora idosa parou em frente á Flávio, ainda caído no chão.
- Você e seu amigo tiveram uma chance que não ofereci ao pai dele. Poderiam ter sobrevivido se não fossem tão inconvenientes.
- É tudo uma farsa. – Murmurou Flávio para si próprio. – Tudo uma grande mentira.
- Sim. Isso mesmo. – Continuou a criatura dentro de Idalina. – E vocês, inocentes ou imbecis, não sei ao certo, se deixam envolver facilmente pelas falsas promessas que espalhamos no mundo dos vivos. Precisam de esperança e a encontram conosco, sem saber a verdade dos fatos. Essa é sua ruína.
Flávio conseguiu, enquanto Idalina falava, se aproximar de uma pequena mesa de canto. Um pesado castiçal de ferro jazia sobre ela.
- Espiritismo. Reencarnação. Comunicação com os mortos. Nada disso é verdade, então?
- Não da maneira como fazemos com que os vivos pensem que é. – Continuou a entidade. – E manteremos vocês cegos e iludidos tempo suficiente até ser tarde demais para sua raça.
Com dificuldade, Flávio conseguiu ficar em pé ao lado da mesa. Sem que o espírito percebesse, posicionou seu braço saudável ao lado do castiçal.
Idalina se aproximou dele.
- Por causa disso precisamos desta casa. Ela é um ponto estratégico. Devo protegê – la. Então, como aconteceu com seu amigo, você vai morrer.
Flávio riu. – E quem vai me matar?
O monstro riu em seguida. – Ou você ficou louco depois de tudo que lhe contei ou todos vocês são ainda mais idiotas do que eu pensava.
- Não há mais ninguém vivo nesta sala. – Respondeu Flávio. – Só restou a mim.
- Idiota! Sua amiga Kardecista é mais do que preciso para...
Flávio não permitiu que a criatura terminasse a frase. Partiu para cima dela desferindo golpes com o castiçal de maneira tão violenta e inesperada que seu inimigo sequer conseguiu reagir. Só parou de golpear quando o corpo de Idalina jazia terrivelmente desfigurado, no chão ao lado do cadáver de Roberto, seu amigo.
- Desgraçado! Vai ter mais problemas comigo do que poderia imaginar.

Tempos depois, já recomposto dos incidentes acontecidos nas horas anteriores, Flávio deixava a casa onde os corpos de seu amigo e de uma invocadora dos mortos jaziam sem vida, em seu interior. Seu ombro direito ainda doía mas já dava sinais de melhora. Do lado de fora da mansão, limpou os pés molhados com querozene e acendeu um isqueiro. Atirou – o no restante do líquido que encharcava a sala de entrada e todos os outros cômodos da casa. O chamas já se espalhavam pelo segundo andar quando o rapaz pegou um táxi, três quarteirões depois da casa de Roberto. Antes que os vizinhos percebessem o fogo que devorava raivoso cada pedaço da grande mansão, o carro de Flávio desapareceu avenida acima, na escuridão da noite.

sexta-feira, novembro 2

Intrusos

Estava suspenso naquele halo de luz azul-clara que, alem de me fazer flutuar a quarenta centímetros do chão, impedia completamente meus movimentos. A sala onde eu me encontrava era circular e as paredes feitas de um tipo de metal branco. Meio metro a frente estava a porta automática por onde me conduziram até esta prisão e por onde voltavam para me buscar agora. Dois daqueles homens homens vestidos com aqueles trajes azuis, saídos de algum filme de ficção científica ou gibi dos X-Men. Sem dizer uma palavra, ou responder as minhas perguntas, me conduziram por corredores feitos do mesmo metal branco de minha cela, até chegarmos a um amplo salão retangular com grandes janelas em três de suas paredes. Meus condutores soltaram minhas mãos e saíram da sala. Somente quando ouvi a porta atrás de mim se fechando percebi que havia mais alguem na sala comigo, sentado numa mesa retangular, feita de mármore, no centro do aposento. Um homem alto, de barba e cabelos grisalhos, vestindo um uniforme semelhante aos que tinha visto antes só que totalmente branco.
- Sente-se. vamos conversar. - Disse ele, indicando a cadeira na outra ponta da mesa.
Obedeci e, sem dizer uma palavra, me sentei.
- Então é você o Famoso Hacker. Procurado em quinze países e dois continentes. Caçado pela CIA e Interpol. Responsável pela invasão aos sistemas da Geneticell e Dei Gratia. Provável autor dos roubos dos planos do novo satélite da NASA. Um currículo invejável, meu jovem...
- Estou sendo feito prisioneiro aqui? - Perguntei.
- Evidentemente. Invadiu nosso sistema.
Decidi ser objetivo como ele estava sendo.
- Quem são vocês? O que era tudo aquilo nos arquivos? Quem eram aqueles...aquelas...coisas que tentaram me matar?
O desconhecido se levantou e caminhou até a janela atrás de sí. De costas para mim, respondeu.
- Somos os protetores. Os guardiões que zelam pela sua espécie. Lutamos a décadas para defender a civilização humana das criaturas que atacaram você.
- E o que são essas "criaturas"?
- Monstros. Nada mais que monstros. O mal puro dotado de consciência que existe apenas para corromper e destruir sua raça. São seus algozes. Seus inimigos primordiais. Já estavam aqui antes que os ancestrais do gênero humano caminhassem sobre o planeta.
Toda aquela história parecia muito estranha pra mim, mas não poderia negar o que ví e enfrentei. Se existissem mais daquelas coisas, e aquele homem afirmava, com toda a certaza do mundo, existirem, a humanidade estava com sérios problemas.
O desconhecido continuou.
- Preocupado? - Perguntou ele, sem ser sarcástico. - Todos ficam, mais ou menos, do mesmo jeito, tem a mesma reação, quando descobrem a verdade.
Ele tinha razão. Estava muito preocupado. Aterrorizado até. Não havia como negar o que aconteceu comigo.
Voltei a perguntar.
- E onde entro nessa história?
Meu companheiro demonstrou espanto.
- Me pergunta uma coisa dessas? Invadiu nossos sitemas e roubou informações sobre nossa tecnologia. Só a posse desses dados já colocava sua vida em risco.
- Inocentes. Gente que não tinham nada a ver com isso morreu. Pessoas que eu amava foram mortas diante dos meus olhos e não pude fazer nada. - Suspirei, pesaroso.
- E culpa á nós por isso? - Ele olhou nos meus olhos enquanto perguntava. - Se meus homens demorassem um pouco mais talvez nem você estivesse aqui, agora.
Permaneci calado. Novamente ele dizia a verdade. Não havia o que responder.
Ele continuou.
- Em nenhum momento se perguntou sobre quem desejava aquelas informações? Quando ascessou os dados do arquivo não estranhou seu conteúdo? A natureza das armas que ele descrevia e sua finalidade?
- Não costumo especular sobre os interesses de meus clientes.
- Esse foi seu erro.
Segui-se um minuto de silêncio incômodo até que meu companheiro quebrasse a monotonia.
- Eles só o procuraram porque sabiam que você era um dos poucos, talvez o único, que conseguiria invadir nossos sistemas e roubar nossos arquivos, considerando-se a diferença existente entre a tecnologia da minha organização e a sua. Eles desejavam informações sobre nossas armas e você ia dar isso a eles.
- Mas não fui bom o suficiente para impedir que vocês me rastreassem e viessem atrás de mim. - Retruquei.
- Essa foi sua sorte. - Disse ele.
Pela terceira vez ele tinha razão. Se seus homens não tivessem invadido o apartamento no exato momento em que aquelas coisas tiravam de mim os arquivos, eu estaria morto.
- E agora? - Voltei a perguntar. - Agora que sei tanto sobre sua existência que, como é visível, trata-se de uma organização secreta, não poderei voltar nunca mais á minha vida normal.
- Evidentemente.
Conformado, indaguei.
- Se desejassem me matar já o teriam feito. O que vai acontecer comigo? Ficarei aprisionado aqui pelo resto de minha vida, não é mesmo?
- Não. De forma alguma. - Sorriu. - Vai se juntar a nós.