quarta-feira, janeiro 2

O habitante

A porta do quarto se abriu. Estava escuro. Muito escuro. Mesmo com as janelas abertas, a pouca claridade que vinha das luzes do jardim era suficiente apenas para lançar sombras fantasmagóricas sobre os móveis do amplo cômodo. Rogério foi o primeiro á entrar. Beatriz veio logo em seguida. O rapaz tentou acender a luz em vão. Não havia força na casa toda. Beatriz caminhou até uma cômoda.
- Não tem sentido procurar por aqui. Não vamos encontrá - la em nenhum lugar. Que ela ia tá fazendo aqui? Se escondendo de nós?
Rogério acionou uma lanterna que trazia consigo e iluminou as portas de um grande guarda - roupas. Sem reservas, arrombou a trava e abriu o móvel com violência.
- Para! Tô ficando ainda mais apavorada. Porque ce tá fazendo isso?
- Porque quero que você entenda! Ponha na sua cabeça, de uma vez por todas, tudo o que está acontecendo aqui! Tudo o que sempre aconteceu com sua família!
O rapaz atirou o que estava dentro do guarda – roupas no chão. Só parou quando encontrou o que procurava.
- Aqui!
Beatriz se aproximou. Eram papéis, documentos, cartas, muito antigos.
- O que é isso? - Beatriz abaixou – se ao lado de seu primo e começou a examinar os papéis. Tratavam de negócios realizados pelos parentes de Beatriz. Compra de terras, transferência de bens. Nomes de pessoas havia muito mortas. Nomes desconhecidos. Pertencentes ao passado. Num dos documentos, porem, a garota reconheceu uma foto carcomida pelo tempo.
Levantou – se com o papel nas mãos. Um atestado de óbito. – Eu conheço este homem – Sussurou Beatriz, quase de maneira inaudível. – Foi quem eu vi com a Marceli...
- Entendeu agora? – Rogério encarou – a nos olhos. – Percebeu a verdade? Eles MATARAM Orestes pra ficar com as terras! Aquela velha maldita planejou e ajudou a executar o assassinato do PRÓPRIO FILHO!
A garota, visivelmente abalada, andava de um lado para o outro, dentro do quarto.
- Só que alguma coisa não deu certo. O morto voltou. – Rogério agachou – se novamente e remexeu os papéis. – Ele tá aqui agora. Só não entendi porque levar a Marceli. Ele tem que se vingar da bruxa velha e do meu pai, que fizeram tudo aquilo e acabaram com a vida dele. Porque a Marceli? Porque você?
- Porque sua prima é a porta de saída desta casa, meu neto. – Rogério e Beatriz quase cuspiram o coração pela boca, tamanho o susto por não terem notado a entrada da velha senhora que agora falava com eles.
- Você é a culpada, velha! – Rogério se aproximou de forma ameaçadora da senhora idosa. – Você matou seu FILHO!!!
A mulher não demonstrou nenhum temor ante a ira do neto e avançou pra dentro do quarto. Agachou – se próxima aos papéis espalhados e os recolheu de volta na caixa onde estavam.
Beatriz abaixou – se ao lado da avó e segurou uma de suas mãos. – Vó. O que o Rogério tá dizendo é verdade? O tio Orestes levou a Marceli embora?
A mulher olhou para a neta e, com a frieza de uma lápide estampada no rosto, simplesmente gesticulou com a cabeça em sinal afirmativo. Beatriz largou imediatamente a mão da matriarca e levantou – se, mais atônita que nunca. Não podia acreditar num absurdo daqueles.
Levantando – se, a senhora guardou novamente a caixa de papéis no guarda – roupas arrombado. Voltou – se para Rogério. – Quanto á você, marginal enxerido, se preza sua vida, é melhor não se envolver com o que não conhece!
- Velha maldita! – O neto bradou, furioso. – Vai nos dizer como trazer a Marceli de volta!
- Idiota! Nem eu, nem vocês, nem ninguem pode fazer nada! - A voz da matriarca assumiu um tom furioso, quase maligno, que assustou os dois primos. - Marceli foi levada porque Beatriz deve libertar Orestes desta casa. Se querem fazer alguma coisa para ajudar aquela infeliz, é melhor começarem a fazer o que eu mando!
Rogério não se conteve e agarrou a avó pelo braço. – Você tá louca, coroa caquética! Depois de tudo que aconteceu, por sua culpa, acha que vamos te obedecer? Nem fod...
- Beatriz! - A voz conhecida vinha do andar de baixo.
- É a Marceli! Está lá embaixo! Vamos!. – Beatriz disparou pela porta do quarto. Rogério foi logo atrás.
– Não, Beatriz! Fique perto de mim...
A garota atravessou rapidamente o corredor do casarão e chegou ás escadarias que conduziam até a sala de visitas. Um misto de espanto e alegria tomou conta de sua mente quando viu a prima desaparecida, sentada num dos sofás. Desceu as escadas e foi até ela.
- Marceli, por onde você esteve? Estávamos todos preo... – Antes de terminar a frase, percebeu que Marceli não estava num estado normal. Parecia congelada. Paralizada no tempo. Sentada no sofá sem emitir nenhum som ou fazer qualquer movimento. Olhos estatelados fitando o vazio. Respiração baixa e ritmada, nada mais.
Só nesse momento notou como o salão todo estava frio. Parecia recoberto por uma névoa gélida. Seu hálito quente escapava da boca em pequenas nuvens.
Rogério alcançou o topo da escadaria. Imediatamente percebeu o frio macabro que parecia, agora, estar se espalhando pelos outros cômodos rapidamente. – Beatriz, venha pra cima agora!
Leonora, a avó dos dois infelizes protagonistas desse horror, apareceu no outro canto da escadaria, logo atrás de seu neto.
– Ele está aqui.
Rogério foi o primeiro a notar a forma translúcida e vaporosa, surgindo lentamente atrás do sofá onde Marceli se encontrava, catatônica. O que quer que fosse era alto, corpulento, vagamente humanóide. Uma massa de névoa sobrenatural acinzentada, com contornos definidos, imitando, ainda que de forma diáfana e irreal, roupa e fisionomia humanas.
Beatriz só viu a entidade quando ela já tinha, de forma incrívelmente rápida, contornado o sofá e estava em sua frente. Tentou dizer alguma coisa. As palavras sumiam em sua boca. O espírito se adiantou.
- Beatriz.
A garota não dizia nada. Mal acreditava no que via.
- Afaste – se dele. Devagar, Beatriz. – Rogério tentava acalmar a prima que, logo abaixo parecia em choque.
- Mandei você se calar, delinquente! – Bradou Leonora, agarrando o braço de Rogério com uma das mãos.
- Cale a boca você, desgraçada! Se acontecer alguma coisa com ela eu te mato!
- Já está acontecendo, meu neto. É só você olhar pra baixo...
E realmente o espírito conversava com Beatriz. De uma forma calma, branda. Longe de parecer ameaçadora.
- Espero por isso a muito tempo. – Disse a forma fantasmagórica.
- Estou com m... medo. Muito medo... - Beatriz balbuciou, quase sem voz.
- E vai ter muito mais. Este pavor é apenas o primeiro.
- Você não pode fazer nada contra mim... Sou eu quem vai libertá – lo.
Um arremedo de sorriso apareceu na face desfocada do espírito.
- Não, minha doce criança. – Respondeu, acariciando o rosto de Beatriz com seu toque frio. – Não ouviu o que sua avó disse? Ninguem aqui pode fazer isso.
O sangue da garota pareceu congelar em suas veias.
- Não posso deixar esta casa. Estou preso aqui. Meu irmão, seu tio, foi muito competente com os grilhões que me acorrentou.
Ricardo, no topo das escadarias, não sabia o que fazer. Se descesse poderia provocar uma reação hostil do espírito. Se ficasse ali, parado, as coisas, talvez, fossem ainda piores. Leonora percebeu que o neto faria alguma coisa em questão de instantes.
- Então o que quer comigo? Porque faz isso com a Marceli? É culpa sua, não é?
- Sim, criança. Sua amada prima está nesse estado por obra minha.
- Por que?
- Porque ela é fraca. Frágil. Não tem a força necessária. Diferente de você!
- E eu tenho? Esta enganado.
- Não, Beatriz. Quem se engana é você. Sabe quão forte é. Teu primo, lá em cima, está a ponto de cair em prantos. Minha mãe por pouco não está tendo um ataque do coração. E você está aqui. Falando comigo. Me encarando frente – á – frente. Tudo para defendê – los.
- É dessa força que preciso. – Continuou o espírito. - Porque, mesmo não podendo me libertar desta casa, você será portadora de minha vontade fora dela.
- Mas do que está falando? Não enten... – Betariz se calou, subitamente. Estava entendendo sim. Agora entendia tudo.
- Você não pode sair. Eu posso sair pra você...
A entidade assentiu com a cabeça.
- Não! – Gritou Rogério. – Você não vai concordar com isso, Beatriz! – Ele também entendia o que o fantasma queria.
Leonora, vendo que a chance de se livrar, de uma vez por todas, do filho morto, estava ameaçada pelo neto intrometido, não hesitou em empurrá – lo escada abaixo. Rogério jamais esperaria por algo como isso. Ingenuidade fatal que lhe custou a vida. Ao atingir o chão da sala, bem próximo de Beatriz, não estava mais vivo.
- Não... Rogério... – A garota nem pode gritar, tamanha sua surpresa. Correu pra perto do primo morto e abaixou – se ao seu lado, colocando sua cabeça no colo, já esquecida do fantasma próximo. O espírito, entretanto, fez – se notar mais uma vez.
- Vê, Beatriz. A vida toda fizeram isso com você. Com Rogério. Com Marceli. Vocês foram sempre manipulados. Sei como se sente. Eu também fui. E meu destino foi o mesmo do rapaz morto em seus braços agora.
Beatriz voltou – se para o espírito, sem nehuma lágrima no rosto.
- Então é isso. Uma barganha. Você salva Marceli e eu faço o que você quer.
- Pura e simplesmente. Nada mais.
Beatriz se levantou e olhou para Leonora, no topo das escadas.
O fantasma pôs a mão em seu ombro.
- Vá. Faça o que eu faria se pudesse.
E Beatriz foi. Disparou escadaria acima. Sua avó não conseguiu reagir, tamanha a surpresa em ver a neta vindo contra ela. A garota agarrou – a pelos colarinhos. Não dizia nada. O ódio queimava em seus olhos. Logo a sua frente, o fantasma apontava para o quarto da matriarca.
- A janela, minha sobrinha. Três andares. Ela não vai resistir.
Rápida, como nunca foi na vida, Beatriz arrastou Leonora quarto adentro. A mulher tentou gritar, implorar pela vida, resistir. Sua estatura baixa e porte idoso não puderam fazer frente aos vinte e dois anos de juventude da neta. No instante seguinte estava voando, janela abaixo, para a morte certeira.

Duas semanas depois, a casa era fechada pelos pais de Beatriz. A história sobre a senilidade da avó que, num surto psicótico, matara seu neto e depois tirara a própria vida não fora, nem por um instante, questionada pela polícia. Ainda mais com as averiguações realizadas dentro da casa, onde investigadores e delegados estavam sobre a completa influência da vontade do tio morto de Beatriz.
Olavo, pai da garota, deu a última volta nas chaves do portão e entrou no carro.
- Não esqueceu nada, meu bem? – Perguntou Rafaela, mãe de Beatriz
- Nada. Tudo devidamente trancado.
- Ótimo. Então amanhã damos entrada na papelada?
- Sim. O mais rápido possível. O quanto antes apagarmos esse lugar de nossas vidas será melhor para todos. Melhor ainda pra nossa princesa aí atrás.
Beatriz sorriu no banco de trás do veículo. Olhou pela janela e viu o fantasma, do lado de dentro do jardim, sorrindo pra ela, com seu semblante eternamente fora de foco. A garota apertou o colar antigo que trazia no pescoço com força. Com isso, somente ela pode ouvir a voz de seu falecido tio claramente, como se estivesse ao seu lado.
- Boa vigem, minha criança. E sabe o que deve fazer, não é mesmo?
- Beatriz sorriu para o espírito e em seguida olhou para o pai.
- Sim. Eu sei...