sábado, outubro 27

Conversa com os mortos

Ricardo subia as escadarias de madeira pé-ante-pé, torcendo para não fazer nenhum barulho. Já passava de duas da manhã e se algum monitor o surpreendesse perambulando pelo casarão seria encrenca na certa.
Chovia bastante naquela noite, o que, de certa forma, ajudava o rapaz a andar sem ser percebido. As vezes um raio caía lá fora e todo o lugar era iluminado por sua claridade fantasmagórica. Independente disso, Ricardo chegou até a última porta do corredor onde estava e, suavemente, bateu. A resposta veio rápido.
- Quem é?
- Sou eu, Ricardo. Abra, Andressa.
A porta se abriu revelando um quarto iluminado por velas onde dois jovens, uma garota e um rapaz, estavam sentados no chão, em volta de um estranho objeto.
- Entre logo antes que alguem nos veja.
Ricardo entrou e sentou ao lado de seus amigos
- Veja isto - Disse Ivan, o outro rapaz. - Chamam de prancheta Ouija. Foi Andressa quem trouxe.
A garota loura que abriu a porta sentou-se ao lado de Ricardo.
- Achei ontem no porão. É incrível! Não imaginava encontrar algo assim por aqui. Não num retiro de Crentes.
Andressa tomou o objeto nas mãos. Tratava – se de uma tábua fina, feita de mogno antigo, com formato triangular, tendo uma pequena roda em cada uma das extremidades. Numa das pontas se notava uma brilhante seta de prata.
Petra, a outra garota sentada, abriu uma espécie de mapa no chão, entre os amigos. Apontando para os caracteres góticos escritos sobre ele, explicou.
- É através disso que se comunicarão conosco. Vejam. - Mostrou as letras do abecedário, dispostas em forma de círculo, no papel. Tomou a prancheta das mãos de Luana e a colocou no meio do cículo de letras. - Estão todos prontos? Podemos começar?
Todos assentiram com a cabeça.
Petra começou a falar.
- Almas abençoadas que vagam pelos reinos espirituais. Ouví nosso clamor! Vinde até nós! Fazei com que saibamos de tuas vontades e possamos ajudá-las!
Ivan é o primeiro a colocar as mãos sobre a tábua. Andressa e Petra o acompanham. Ricardo, meio receoso, se junta por último aos colegas.
Alguns minutos de silêncio passam. Os amigos aguardam.
- Vejam. - Mostra Andressa.
A tábua começou a se mover.
- Estamos aqui alma abençoada. Diga-nos quem és!
A ponta de prata da prancheta Ouija apontou para a letra M movendo-se com fluidez espantosa. Ricardo sabia que jamais se comportaria daquela maneira se algum de seus amigos estivesse com Brincadeiras.
Rapidamente um nome aparecia com o movimento do objeto. Márcia.
era a vez de Petra tomar a dianteira.
- Márcia. Fale conosco. O que deseja de nós?
- Tenho medo... Sinto muito frio...
Ao ler as palavras, Ricardo sentiu certo desconforto mas procurou relaxar, afinal de contas, não era esse tipo de coisa que se espera de uma alma penada?
Ivan continuava.
- Irmã,não tenha medo! Estamos aqui para ajudá-la!
A tábua descrevia seu balé sobre as letras impressas no papel abaixo.
- Não podem me ajudar.
- Não tema irmã. - Continuou Petra. - Pode confiar em nós!
- Vocês não entendem... Estou perdida.
Mesmo tentando se conscientizar que nada de importante poderia sair daquilo tudo, Ricardo foi tomado por uma estranha sensação, como se algo estivesse errado, uma coisa que seus amigos não compartilhavam, entretanto.
A tábua continuava sua dança sinuosa.
- Alguem precisa fazer alguma coisa... Preciso de alguem... - Articulava o movimento entre as letras. - A culpa foi minha. Toda minha...
- Culpa de quê, irmã Márcia? - Insistia Ivan
- Renan sabia de tudo... Não havia como esconder... Precisava fugir.
- Fugir de quê, irmã? O quê a preocupava? - Questionava Petra, cada vez mais envolvida.
Nesse momento a janela se abriu e um forte vento apagou todas as velas espalhadas pelo quarto. Andressa pediu a todos que permanecessem em seus lugares.
Petra buscava esclarecimentos com o espírito.
- Por favor irmã! - Dizia ela. - Seja mais clara, por favor. Não conseguimos compreendê-la!
Ricardo sabia que, no tom que Petra falava, seria ouvida por alguem, não fosse pelo barulho da tempestade lá fora.
Ivan buscava prolongar a conversa.
- Irmã, não nos abandone. Responda nossas perguntas. Permita-nos ajudá-la.
- Não posso... É tarde demais. Eles já estão aqui... Levar... Embora... - A tábua Ouija moveu-se pela última vez.
Não houve mais resposta. Por mais que tenassem a prancheta não se movia com a graça sobrenatural de antes, voltando a ser um objeto de madeira comum sob as mão dos quatro amigos.
- Ela se foi... Suspirou Andressa.
- Acho que algo saiu errado. Não devemos ter feito as perguntas certas, sei lá... - Dizia Ivan, chateado.
Petra recolhia a prancheta e dobrava o papel com as letras.
- Já chega. Vamos parar antes que alguem nos pegue fazendo essas coisas.
A tempestade, do lado de fora, havia desaparecido.
Ricardo desceu sorrateiramente as mesmas escada de uma hora atrás. Estava, de certa forma, aliviado por tudo ter acabado. Chegou em seu quarto, tirou os tênis, a camiseta e deitou-se. O sono não demorou a chegar. No entanto, dormira com aquela mesma sensação de algo continuava errado. Muito errado.

O sol brilhava alto no céu quando Ricardo acordou com alguem batendo na porta de seu quarto. Era Ivan.
- Vem comigo.
- Espera eu me trocar...
- Não. - Insistia Ivan. - Vem comigo!
Ricardo não teve opção senão acompanhar seu amigo pelos corredores e salas do casarão. Ao chegarem no pátio de entrada, pode ver a aglomeração de jovens e funcionários ao redor de uma ambulância. Dois médicos colocavam uma maca com um corpo coberto dentro do veículo. Ao lado deles um rapaz, com mais ou menos a idade de Ricardo e Ivan, chorava desconsolado.
Ivan estava chorando tambem.
- O que foi? - Perguntou Ricardo. - Você conhecia a pessoa que morreu?
Seu amigo consentiu com a cabeça.
- Do que morreu?
- Suicídio. Ontem a noite. - Respondeu Ivan
- Que idiota...
- Você tambem conhecia, Ricardo.
- Conhecia? Quem é? Qual o nome dele?
- Dele não. Dela.
Ricardo não entendia nada.
- Ela quem, Ivan?
- Márcia.